sábado, 7 de novembro de 2015

Obscuros Poemas





Poema do Transfigurado

 

E se nada acontecer?
Se os rostos deformados e os sentidos mendigos,
Os olhos famintos e as mãos que interrogam,
A carne que sangra desejos
E afoga a regeneração,
Se transformarem na cinza das ausências
E a dúvida acenar, ainda,
Como um profeta maior?
Se o silêncio pesar, como o remorso,
Sobre o grito de angústia
E a esfinge recolher o pranto e o riso do transfigurado?
Se abortarem todos os sonhos
E ele purificar os lábios no próprio sangue
E nada acontecer?

Autor: Antônio Pinto de Medeiros Filho





Monólogo de Uma Sombra


"Sou uma Sombra! Venho de outras eras,
Do cosmopolitismo das moneras...
Pólipo de recônditas reentrâncias,
Larva de caos telúrico, procedo
Da escuridão do cósmico segredo,
Da substância de todas as substâncias!

A simbiose das coisas me equilibra.
Em minha ignota mônada, ampla, vibra
A alma dos movimentos rotatórios...
E é de mim que decorrem, simultâneas,
A sáude das forças subterrâneas
E a morbidez dos seres ilusórios!

Pairando acima dos mundanos tetos,
Não conheço o acidente da Senectus
- Esta universitária sanguessuga
Que produz, sem dispêndio algum de vírus,
O amarelecimento do papirus
E a miséria anatômica da ruga!

Na existência social, possuo uma arma
- O metafisicismo de Abidarma -
E trago, sem bramánicas tesouras,
Como um dorso de azémola passiva,
A solidariedade subjetiva
De todas as espécies sofredoras.

Como um pouco de saliva quotidiana
Mostro meu nojo á Natureza Humana.
A podridão me serve de Evangelho...
Amo o esterco, os resíduos ruins dos quiosques
E o animal inferior que urra nos bosques
E com certeza meu irmão mais velho!

Tal qual quem para o próprio túmulo olha,
Amarguradamente se me antolha,
À luz do americano plenilúnio,
Na alma crepuscular de minha raça
Como urna vocação para a Desgraça
E um tropismo ancestral para o Infurtúnio.

Aí vem sujo, a coçar chagas plebéias,
Trazendo no deserto das idéias
O desespero endêmico do inferno,
Com a cara hirta, tatuada de fuligens
Esse mineiro doido das origens,
Que se chama o Filósofo Moderno!

Quis compreender, quebrando estéreis normas,
A vida fenomênica das Formas,
Que, iguais a fogos passageiros, luzem...
E apenas encontrou na idéia gasta,
O horror dessa mecânica nefasta,
A que todas as coisas se reduzem!

E hão de achá-lo, amanhã, bestas agrestes,
Sobre a esteira sarcófaga das pestes
A mostrar, já nos últimos momentos,
Como quem se submete a uma charqueada,
Ao clarão tropical da luz danada,
O espólio dos seus dedos peçonhentos.

Tal a finalidade dos estames!
Mas ele viverá, rotos os liames
Dessa estranguladora lei que aperta
Todos os agregados perecíveis,
Nas eterizações indefiníveis
Da energia intra-atômica liberta!

Será calor, causa ubíqua de gozo,
Raio X, magnetismo misterioso,
Quimiotaxia, ondulação aérea,
Fonte de repulsões e de prazeres,
Sonoridade potencial dos seres,
Estrangulada dentro da matéria!

E o que ele foi: clavículas, abdômen,
O coração, a boca, em síntese, o Homem,
- Engrenagem de vísceras vulgares -
Os dedos carregados de peçonha,
Tudo coube na lógica medonha
Dos apodrecimentos musculares!

A desarrumação dos intestinos
Assombra! Vede-a! Os vermes assassinos
Dentro daquela massa que o húmus come,
Numa glutoneria hedionda, brincam,
Como as cadelas que as dentuças trincam
No espasmo fisiológico da fome.

E unia trágica festa emocionante!
A bacteriologia inventariante
Toma conta do corpo que apodrece...
E até os membros da família engulham,
Vendo as larvas malignas que se embrulham
No cadáver malsão, fazendo uns.

E foi então para isto que esse doudo
Estragou o vibrátil plasma todo,
À guisa de um faquir, pelos cenóbios?!...
Num suicídio graduado, consumir-se,
E após tantas vigílias, reduzir-se
À herança miserável de micróbios!

Estoutro agora é o sátiro peralta
Que o sensualismo sodomista exalta,
Nutrindo sua infâmia a leite e a trigo...
Como que, em suas células vilíssimas,
Há estratificações requintadíssimas
De uma animalidade sem castigo.

Brancas bacantes bêbedas o beijam.
Suas artérias hírcicas latejam,
Sentindo o odor das carnações abstêmias,
E á noite, vai gozar, ébrio de vício,
No sombrio bazar do meretrício,
O cuspo afrodisíaco das fêmeas.

No horror de sua anômala nevrose,
Toda a sensualidade da simbiose,
Uivando, á noite, em lúbricos arroubos,
Como no babilônico sansara,
Lembra a fome incoercível que escancara
A mucosa carnívora dos lobos.

Sôfrego, o monstro as vítimas aguarda.
Negra paixão congênita, bastarda,
Do seu zooplasma ofídico resulta...
E explode, igual á luz que o ar acomete,
Com a veemência mavórtica do aríete
E os arremessos de uma catapulta.

Mas muitas vezes, quando a noite avança,
Hirto, observa através a tênue trança
Dos filamentos fluídicos de um halo
A destra descamada de um duende,
Que tateando nas tênebras, se estende
Dentro da noite má, para agarrá-lo!

Cresce-lhe a intracefálica tortura,
E de su'alma na cavema escura,
Fazendo ultra-epiléticos esforços,
Acorda, com os candieiros apagados,
Numa coreografia de danados,
A família alarmada dos remorsos.

É o despertar de um povo subterrâneo!
E a fauna cavernícola do crânio
- Macbetbs da patológica vigília,
Mostrando, em rembrandtescas telas várias,
As incestuosidades sangüinárias
Que ele tem praticado na família.

As alucinações tácteis pululam.
Sente que megatérios o estrangulam...
A asa negra das moscas o horroriza;
E autopsiando a amaríssima existência
Encontra um cancro assíduo na consciência
E três manchas de sangue na camisa!

Míngua-se o combustível da lanterna
E a consciência do sátiro se inferna,
Reconhecendo, bêbedo de sono,
Na própria ânsia dionísica do gozo,
Essa necessidade de horroroso,
Que é talvez propriedade do carbono!

Ah! Dentro de toda a alma existe a prova
De que a dor como um dartro se renova,
Quando o prazer barbaramente a ataca...
Assim também, observa a ciência crua,
Dentro da elipse ignívoma da lua
A realidade de urna esfera opaca.

Somente a Arte, esculpindo a humana mágoa,
Abranda as rochas rígidas, torna água
Todo o fogo telúrico profundo
E reduz, sem que, entanto, a desintegre,
À condição de uma planície alegre,
A aspereza orográfica do mundo!

Provo desta maneira ao mundo odiento
Pelas grandes razões do sentimento,
Sem os métodos da abstrusa ciência fria
E os trovões gritadores da dialética,
Que a mais alta expressão da dor estética
Consiste essencialmente na alegria.

Continua o martírio das criaturas:
- O homicídio nas vielas mais escuras,
- O ferido que a hostil gleba atra escarva,
- O último solilóquio dos suicidas -
E eu sinto a dor de todas essas vidas
Em minha vida anônima de larva!"

Disse isto a Sombra. E, ouvindo estes vocábulos,
Da luz da lua aos pálidos venábulos,
Na ânsia de um nervosíssimo entusiasmo,
Julgava ouvir monótonas corujas,
Executando, entre caveiras sujas,
A orquestra arrepiadora do sarcasmo!

Era a elegia panteísta do Universo,
Na podridão do sangue humano imerso,
Prostituído talvez, em suas bases...
Era a canção da Natureza exausta,
Chorando e rindo na ironia infausta
Da incoerência infernal daquelas frases.

E o turbilhão de tais fonemas acres
Trovejando grandiloquos massacres,
Há-de ferir-me as auditivas portas,
Até que minha efêmera cabeça
Reverta á quietação da treva espessa
E à palidez das fotosferas mortas!

Autor: Augusto dos Anjos







Spleen

Quando o cinzento céu, como pesada tampa,
Carrega sobre nós, e nossa alma atormenta,
E a sua fria cor sobre a terra se estampa,
O dia transformado em noite pardacenta;
Quando se muda a terra em húmida enxovia
D'onde a Esperança, qual morcego espavorido,
Foge, roçando ao muro a sua asa sombria,
Com a cabeça a dar no teto apodrecido;
Quando a chuva, caindo a cântaros, parece
D'uma prisão enorme os sinistros varões,
E em nossa mente em febre a aranha fia e tece,
Com paciente labor, fantásticas visões,
- Ouve-se o bimbalhar dos sinos retumbantes,
Lançando para os céus um brado furibundo,
Como os doridos ais de espíritos errantes
Que a chorar e a carpir se arrastam pelo mundo;
Soturnos funerais deslizam tristemente
Em minh'alma sombria. A sucumbida esperança,
Lamenta-se, chorando; e a Angústia, cruelmente,
Seu negro pavilhão sobre os meus ombros lança!


Autor: Charles Baudelaire, "Flores do Mal "



Suicídio
Sentindo a lâmina ranger ao pescoço
Ao vão de quatro paredes – silêncio
Exaltando o medo, que por intenso
Faz-se fugir aos olhos e ouvidos
E a punhos trêmulos, aflitos
Refugio a alma todo meu desgosto

Penso no que busco - paz
Desligando-me deste mundo – ao avesso
Imagino um caminho, um novo começo
Junto a esperança de um universo novo
Mas o sangue esgota-se em meu corpo
E agora é tarde demais

Autor:  André Moraes

ELOGIO DA MORTE


Morrer é ser iniciado. (Antologia grega.)


I
Altas horas da noite, o Inconsciente
Sacode-me com força, e acordo em susto.
Como se o esmagassem de repente,
Assim me para o coração robusto.
Não que de larvas me povoe a mente
Esse vácuo noturno, mudo e augusto,
Ou forceje a razão por que afugente
Algum remorso, com que encara a custo…
Nem fantasmas noturnos visionários,
Nem desfilar de espectros mortuários,
Nem dentro em mim terror de Deus ou Sorte…
Nada! o fundo dum poço, húmido e morno,
Um muro de silencio e treva em torno,
E ao longe os passos sepulcrais da Morte.

II
Na floresta dos sonhos, dia a dia,
Se interna meu dorido pensamento…
Nas regiões do vago esquecimento
Me conduz, passo a passo, a fantasia…
Atravesso, no escuro, a nevoa fria
Dum mundo estranho, que povoa o vento…
E meu queixoso e incerto sentimento
Só das visões da noite se confia.
Que místicos desejos me enlouquecem?
Os abismos do Nirvana aparecem
A meus olhos, na muda imensidade!
Nesta viagem pelo ermo espaço,
Só busco o teu encontro e o teu abraço,
Morte! irmã do Amor e da Verdade!

III
Eu não sei quem tu és—mas não procuro
(Tal é minha confiança) devassa-lo.
Basta sentir-te ao pé de mim, no escuro,
Entre as formas da noite, com quem falo.
Através do silencio frio e obscuro
Teus passos vou seguindo, e, sem abalo,
No cairei dos abismos do Futuro
Me inclino a tua voz, para sonda-lo.
Por ti me engolfo no noturno mundo
Das visões da região inominada,
A ver se fixo o teu olhar profundo…
Fixá-lo, compreendê-lo, basta uma hora,
Funérea Beatriz de mão gelada…
Mas única Beatriz consoladora!

IV
Longo tempo ignorei (mas que cegueira
Me trazia este espirito enublado!)
Quem fosses tu, que andavas a meu lado,
Noite e dia, impassível companheira…
Muitas vezes, é certo, na canseira,
No tedio extremo dum viver magoado,
Para ti levantei o olhar turbado,
Invocando-te, amiga derradeira…
Mas não te amava então nem conhecia:
Meu pensamento inerte nada lia
Sobre essa muda fronte, austera e calma.
Luz intima, afinal, alumiou-me…
Filha do mesmo pai, já sei teu nome,
Morte, irmã coeterna da minha alma!

V
Que nome te darei, austera imagem,
Que avisto já num angulo da estrada,
Quando me desmaiava a alma prostrada
Do cansaço e do tedio da viagem?
Em teus olhos vê a turba uma voragem,
Cobre o rosto e recua apavorada…
Mas eu confio em ti, sombra velada,
E cuido perceber tua linguagem…
Mais claros vejo, a cada passo, escritos,
Filha da noite, os lemas do Ideal,
Nos teus olhos profundos sempre fitos…
Dormirei no teu seio inalterável,
Na comunhão da paz universal,
Morte libertadora e inviolável!

VI
Só quem teme o Não-ser é que se assusta
Com teu vasto silencio mortuário,
Noite sem fim, espaço solitário,
Noite da Morte, tenebrosa e augusta…
Eu não: Minh ‘alma humilde mas robusta
Entra crente em teu átrio funerário:
Para os mais és um vácuo cinerário,
A mim sorri-me a tua face adusta.
A mim seduz-me a paz santa e inefável,
E o silencio ideal do Inalterável,
Que envolve o eterno amor no eterno luto.
Talvez seja pecado procurar-te,
Mas não sonhar consigo e adorar-te,
Não-ser, que és o Ser único absoluto.


Autor:  Antero Quental, "Sonetos"

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